segunda-feira, 19 de junho de 2023

Aos meus futuros filhos

Hoje, me sinto mais perto de vocês. Antes, vocês eram sonhos hipotéticos da minha mente infantil, personagens inventados por mim. Na minha ingenuidade descorri diversas vezes sobre seus jeitos futuros, esperando que perdoassem os erros. Eu não tinha parâmetro, só conhecia a mim e orava torcendo pra que não herdassem meus muitos defeitos. Ou pior, aprendessem de mim o erro.  Olhava meus pais e via figuras de tanto amor, cuidado e justiça. E eu chorava pensando em equilibrar tudo isso em mim. Não cabia. Sofria com a possibilidade da maternidade não caber mim. 


Sempre sonhei em ser mãe, não tenho nenhuma pretensão de colocar meus outros sonhos na frente desse, nunca tive. A esperança de um dia ter vocês sempre me motivou. No entanto, pela graça completa de Deus ganhei ainda muitos outros sonhos, minha carreira, meus ministérios de serviço. Hoje, tenho novos medos que incluem meus horários extensivos de trabalho, nossa vida de exposição no ministério pastoral da nossa família, o contato de vocês com esse mundo cada vez mais injusto e triste. Creio que hoje tenho uma mente mais realista, e talvez por isso, um pouco menos corajosa. Tenho que me lembrar constantemente das promessas de sustento, graça e amor de Cristo.


Espero que consigam ver além dos nossos defeitos, que possam em parte perdoar algumas das minhas noites de ausência no trabalho, as programações extensas na igreja enquanto estão com fome ou sono, nossas desavenças e os "nãos" que não terei como justificar.  Espero que possam enxergar a essência do nosso coração que sempre será guiado pelo amor a Deus e a vocês. Sei que é pedir muito de crianças, mas como toda futura mãe, creio que vocês serão bem melhores que eu. Estejam certos do nosso amor, mas especialmente e principalmente do amor de Cristo. Hoje, no meio de muitas coisas, ainda não pronta para tê-los, sinto sua ausência em mim. Saibam que sempre foram amados e esperados. Antes, escrevia pensando em como vocês seriam, atribuía a vocês características que eu julgava de valor, mas hoje, percebo a injustiça das minhas expectativas na adolescência. Hoje, só espero que amem a Deus, e deixo as expectativas restantes comigo.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

𝙈𝙀𝙄𝙊

Ah os começos! Tão cheios de energia e esperança, lotados de bons pensamentos e gratidão. Geralmente acontecem logo após um final dramático e são verdadeiras bençãos dadas por Deus. Um casamento após o noivado, uma matrícula após anos de vestibular, um emprego após anos de espera, uma gestação após anos de infertilidade. É fácil estar perto de Deus nos começos, afinal, eles são sim reflexos da graça divina. Nosso coração se encontra tão cheio de felicidade e é fácil ser grato quando ganhamos um presente.


Mas e os finais? Difícil descrever a sensação de alívio e conquista quando enfim terminamos algo.  O término de um namoro que não fazia bem, o fim da faculdade, da pós, o fim da gestação. Ah, os finais também têm suas belezas! Neles reconhecemos nossas vitórias, pontos fortes e momentos de glória. Também é fácil estar perto de Deus quando vencemos. 


No entanto, hoje não vim falar sobre nenhum dos dois. Hoje, vim falar dos meios, das metades, do que é incompleto e do que falta terminar. Nem sempre é fácil estar perto de Deus nos meios. Neles, somos cobrados e provados; somos diariamente confrontados com as nossas próprias incapacidades e incertezas. Não é fácil dar conta de nossas rotinas sem sucumbir às muitas crises que envolvem a humanidade em nós. Hoje, sigo no meio, de muitas coisas, mas principalmente de mim. Inacabada e incerta, eu sigo orando para que além do começo e fim, Deus seja também o meio.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

prosa

 

    Toda vez que leio um bom livro escrito em prosa fico tentando adaptar o gênero literário à minha vida. Vejo um nascer do sol comum, ordinário, e inicio em minha mente uma descrição detalhada das suas cores e de como cada uma delas realça um novo sentimento em mim. Vejo uma criança andando na rua e minha mente vaga pelas histórias desconhecidas por mim, e provavelmente por ela, do que ainda virá em sua vida. Tento a cada simples ato cotidiano buscar uma nova maneira de exaltar beleza nas pequenas coisas. Eu fico assim durante um tempo e depois, conforme o efeito literário passa, eu volta a ver as coisas com um olhar menos sensível. Isso é bom e é ruim. 

    Quando trabalhamos com pessoas de forma geral precisamos de um alto grau de empatia, o que as vezes é tão difícil pra nós. São tantas realidades diferentes, e as vezes não nos vemos em nenhuma delas. E quando isso de fato acontece, quando nos encontramos em histórias compartilhadas, choramos, sofremos e indagamos porque tamanha frustração na vida. Ao mesmo tempo precisamos ser práticos, entender quando podemos ou não ajudar,  manejar as questões burocráticas e torcer pra que a empatia, antes tanta, não se esvaia no nosso mecanismo diário de trabalho quando não nos reconhecemos em olhares alheios. É difícil equilibrar, confesso. 

    Acredito que seja um fardo para todos e não meu especificamente. Talvez isso tire um pouco a autenticidade desse texto, talvez de mim, mas não me importo. Geralmente escrevo pelo desejo de guardar sentimentos em mim, mesmo os não autênticos. E nesse ímpeto de escrever de forma tão tocante quanto os livros que leio percebo que minha vida em nada é interessante. Digo do meu ponto de vista, fadado ao viés. Então prefiro descrever o nascer do sol, as crianças na rua e por fim, as histórias marcantes dos pacientes queridos que passam por mim. Esses sim, tão especiais e cheios de histórias que merecem um livro de prosa. Todos unidos pelo meu olhar ingênuo, minha escrita desprovida de forma e meus sentimentos imaturos. No final, viram um pouco minhas histórias, eu acho. 

    Nesse mundo tão voltado para nós mesmos, tendo sentido prazer em reparar nos outros. Nem sempre consigo, é verdade, mas juro que tento. Examino, escuto, estudo. Alguns pacientes trazem sentimentos bons, outros ruins, mas a interação é fundamental. De volta ao trabalho sigo feliz podendo reparar em pessoas desconhecidas, buscando olhares parecidos e diferentes, ansiosa pra ouvir novas histórias, e claro, poder ajudar de alguma forma. Penso que são tantas histórias que ainda virão; me sinto um pouco como a criança do começo do texto, sem sabê-las, porém disposta a conhecê-las. Isso dá um pouco de esperança, eu imagino. A esperança de ouvir ainda novas histórias lindas e reais é bom motivo para procurá-las...   


segunda-feira, 18 de maio de 2020

A bonança e o deserto



"E o Senhor disse a Moisés: "Você vai descansar com os seus antepassados, e este povo logo irá prostituir-se, seguindo aos deuses estrangeiros da terra em que vão entrar. Eles se esquecerão de mim e quebrarão a aliança que fiz com eles. Naquele dia se acenderá a minha ira contra eles e eu me esquecerei deles; esconderei deles o meu rosto, e eles serão destruídos. Muitas desgraças e sofrimentos os atingirão, e naquele dia perguntarão: "Será que essas desgraças não estão acontecendo conosco porque o nosso Deus não está mais conosco? E com certeza esconderei o meu rosto deles naquele dia, por causa de todo o mal que praticaram, voltando-se para outros deuses." - Deuteronômio 31:16-18
 
    No livro de Deuteronômio vemos algumas orientações provavelmente escritas por Moisés ao povo antes da data da sua morte, já anunciada por Deus. Aqui, pouco faltava para o povo entrar, conquistar e morar de fato na terra prometida do Senhor ao mesmos, Canaã, a terra onde há com fartura leite e mel. O povo, que tanto sofrera nas mãos de seus feitores egípcios, se encontrava agora prestes a aproveitar sem restrições as promessas do Senhor, a bonança, a vida seus grandes problemas, a calmaria do mar, uma terra pra chamar de sua. E mesmo assim, eles pecariam (e muito) na bonança que o próprio Deus os dera. "Absurdo, que povo rebelde e tão facilmente convencido pelo pecado" - talvez você pense. Eu não, em nada me surpreende o pecado do povo de Israel uma vez que somos tão parecidos, em tantos aspectos. O retrato da humanidade, prontos pra pecar, sedentos pelo perdão de Deus. 

    O que me surpreende aqui é o mesmo que me surpreende sempre - a postura de Deus. Claro que sabemos que o conhecimento de Deus é eterno e infindável, e tendo isso em mente é fácil pensar que ele conheceria os maus caminhos apresentados e, infelizmente, seguidos pelo seu tão querido povo. Mesmo assim, o que vemos aqui, é a permanência de Deus - ainda que seu povo fosse facilmente persuadido a pecar enquanto aproveitava sua promessa, Deus não a suspendeu. Pelo contrário, os ajudou em cada etapa de conquista da sua bonança e assistiu o povo escolher outros deuses, outros princípios, outras verdades. Por que afinal realmente temos a escolha. No deserto, apesar de alguns percalços, o povo era mais fiel, mais voltado à busca pela presença do Senhor, facilmente arrependido de seus erros quando os mesmos ocorriam. Ou seja, o povo foi mais fiel no deserto do que na bonança.

O grande reflexo da humanidade hoje! Mais de milhares de anos e continuamos iguais. Infiéis no muito e na bonança, e facilmente voltados a Deus em crises e tristezas. Agora, que vivemos de certo uma crise mundial, a busca por Deus cresce, seu nome é mais exaltado e clamado por vozes um tanto silenciosas nos dias melhores. Continua sendo triste, mas Deus também continua o mesmo, sempre. Nesses momentos me agarro a versículos do mesma Bíblia.

    "Que o ímpio abandone seu caminho, e o homem mau, os seus pensamentos. Volte-se ele para o Senhor, que terá misericórdia dele; volte-se para o nosso Deus, pois ele perdoará de bom grado. Pois os meus pensamentos não são os pensamentos de vocês, nem os seus caminhos são os meus caminhos, declara o Senhor. Assim como os céus são mais altos do que a terra, também os meus caminhos são mais altos do que os seus caminhos e os meus pensamentos mais altos do que os seus pensamentos. - Isaías 55:7-9

segunda-feira, 16 de março de 2020

onde habita a sabedoria?




"De onde vem, então, a sabedoria? Onde habita o entendimento? Escondida está nos olhos de toda criatura viva, até das aves dos céus. A Destruição e a Morte dizem:  Aos nossos ouvidos só chegou um leve rumor dela. Deus conhece o caminho; só ele sabe onde habita, pois Ele enxerga os confins da terra e vê tudo o que há debaixo do céu. Quando ele determinou a força do vento e estabeleceu a medida exata para as águas, quando fez um decreto para chuva e o caminho para tempestade trovejante, ele olhou a sabedoria e a avaliou; confirmou-se e a pôs a prova. Disse então ao homem: No temor do Senhor está a sabedoria, e evitar o mal é ter entendimento." Jó 28: 20 - 28

Eu sei, eu sei - o livro da sabedoria é o livro de Provérbios. Mas acho incrível quando conseguimos tirar uma dose de sabedoria e aplicação pessoal em cada capítulo da palavra de Deus. Nesse contexto, os amigos de Jó conversavam sobre quem seria justo e sábio aos olhos de Deus - ninguém, nenhum homem sequer. Como diz o texto bíblico: "como pode então o homem ser justo diante de Deus? Como pode ser puro quem nasce de mulher? Se nem a lua é brilhante e nem as estrelas são puras aos olhos  dele, muito menos o homem será, que não passa de larva, o filho do homem que não passa de verme." - Jó 27.

Se nós não a temos sem esforço, onde está a sabedoria? Nos discursos políticos que usam a teologia e o próprio Jesus como justificativa de seus próprios pecados e imparcialidade? Nas nossas palavras, às vezes consideradas tão sábias por nós mesmos, no calor de discussões? Na nossa postura cheia de arrogância por um conhecimento humano que não passa de um sopro? Com base bíblica, eu terei que discordar de tantos. A sabedoria não está nos homens - pelo contrário, somos imprudentes e insensatos, na imensa maioria das vezes. Homens crentes e não crentes, justos ou injustos, santos ou impuros - não há sabedoria. É por isso que matamos uns aos outros, ferimos uns aos outros e sem nenhum pudor usamos tudo o que há em nós para nos mostrarmos mais justos, mais inteligentes, com discursos mais coerentes. A troco de que? a sabedoria não está nos homens. Nada disso faz sentido.

A sabedoria não caminha nos nossos passos errados justificados por nós mesmos. Penso que a sabedoria é tão pura que só poderia ser obra do nosso santo Deus - só Deus sabe onde ela habita. Ele mesmo, que determina a força do vento, mede as águas, decreta a chuva e abre o caminho para tempestade. O detentor de toda sabedoria. Nada adianta sermos sábios aos olhos humanos, cheios de filosofias vãs e orgulho "santo". A sabedoria de Deus é inalcançável - pelo menos, assim pensava eu antes de ler Jó. No entanto, Deus diz ao homem: "no temor do Senhor está a sabedoria, e evitar o mal é ter entendimento." Evitar o mal nesse mundo tão cheio dele e temer ao Senhor - esse é o segredo para um vida cheia de sabedoria das boas. Confesso que longe estou, permaneço perto das filosofias vãs, mas oro pra ser cada dia mais temente ao Senhor, evitando o mal e tendo real entendimento das situações e das minhas reações.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

será que eu sirvo?



Amanda, 8 anos, chega a emergência com uma história de trauma de 2 metros de altura de um brinquedo do colégio onde estuda. Apresenta sinais de rebaixamento de consciência, ou seja, se encontra sonolenta e falando palavras sem sentido. Ela vem acompanhada pela vó que muito nervosa não consegue explicar direito o que aconteceu. Eu, que antes era expectadora da situação não consegui me conter e tive que participar do atendimento de trauma pediátrico num serviço quase 100% de pacientes adultos. Era o meu primeiro, depois de alguns plantões naquele serviço. Me vi totalmente envolvida na situação. Levamos a menina tão linda com suas duas trancinhas e roupa escolar pra TC. Durante o exame a mãe chega chorosa e aflita pela menina; e eu tenho que me controlar pra não chorar também. Fico pensando que talvez eu não sirva pra esse negócio de Medicina não, mas não tenho tempo de pensar isso na hora. Enquanto aguardamos o resultado da TC, internamos a criança para observação e investigação do quadro. 

Enquanto eu vou e volto resolvendo alguns assuntos burocráticos encontro alguns familiares de Amanda pelo corredor aflitos por uma posição médica e eu, que ainda não era, me esforçava pra lembrar de tudo que haviam me dito e o que eu lembrava de ter estudado. Não consigo nem terminar meus pensamentos e falas um tanto confusos, sem certeza, e volto pra sala amarela. Lá vamos nós pegar o acesso da linda menina agora com suas tranças desfeitas - e como é difícil e angustiante ouvir criança chorar. Ainda mais uma mocinha tão frágil por tudo o que tinha acontecido. Mas permaneci lá, tentando não chorar junto e juro que não chorei. Ufa! Conseguimos de primeira.

Respiro aliviada enquanto caminho pra buscar uma nova gaze em outra sala e esbarro com o pai, aos prantos. Explico que só pode entrar uma pessoa por vez na sala e ele chora ainda mais. Tive que deixar ele entrar.
 - "mas só por cinco minutos tá bem?"
"- muito obrigada, doutora!" 
Tento explicar que eu não o sou, mas ele já está entrando na sala. Vou e volto mais uma vez. No caminho mais uma vez sou parada por uma senhora em prantos, procurava pela netinha dela Amanda. Ela soubera do acidente há pouco e precisava ver a neta. Vontade de chorar mais uma vez presente, pensando na minha vó. Eu sei que não devia, mas só consigo pensar na minha vovó - estaria do mesmo jeito. 

E lá vou eu, deixar mais uma pessoa sem permissão entrar. Mais uma vez penso que não sirvo pra isso. Eles entram, se falam, se beijam, choram pela criança que não consegue reconhecer muito bem os mesmos. Eu aguardo os dois minutos prometidos e lá vou eu, fazer a coisa mais difícil pra mim, pedir para os familiares deixarem apenas um no quarto. Eles tem algumas perguntas que eu respondo, em parte e com cautela. Na saída, a senhora me abraça e chora, me diz que eu não sei o bem que fiz a ela. "Você é a Pediatra né? Minha filha, muito obrigada." Eu não era, não sou. Mas a pergunta ecoou na minha cabeça e me fez pensar na Clarissa de alguns dias atrás tão duvidosa de algumas certezas anteriores. E agora a resposta divina havia vindo dos lábios de uma senhora agradecida, no momento abraçada a mim. Acho que nunca vou esquecer esse dia. No meio do caos, Deus ainda responde dúvidas, ainda cuida de nós. Amanda foi recuperando depois de um tempo a consciência, mesmo que sonolenta, e eu quando pisei fora do hospital chorei tudo o que não tinha chorado lá dentro. Talvez eu sirva pra esse negócio de Medicina.

p.s nome fictício da paciente 

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Escala de dor



Hora de ir embora, finalmente, depois de um dia sem muita ação no CTI pediátrico. Eu cansada estava pela semana intensa e pelas noites mal dormidas. Enquanto tirava o jaleco pra ir pra casa, sobem duas crianças, duas novas vagas cedidas. Coloquei o jaleco de novo e fui ajudar. Nem tanto como eu gostaria, o internato é cruel as vezes. Escolhi ficar perto de um menininho, 2 anos, chorava muito e queria mãe. Normal, quem não ia querer. A mãe havia descido pra resolver questões burocráticas da internação. Era uma Insuficiência Respiratória, quanto mais ele chorava, pior ficava. Fizemos as coisas mesmo assim, porque  precisávamos tratá-lo. Fiquei ao lado dele, tentando não atrapalhar mais que ajudar.

De luvas e capote comecei a acariciar sua cabeça; ele continuava a chorar. Eu falei: "olha aqui pra tia" - ele olhou. "Vamos respirar: cheira uma flor e sopra uma vela". Ele fez, enquanto chorava ainda, mas foi fazendo. Já estava mais calmo quando as médicas residentes vieram colher um exame de sangue necessário. Só de ver os tubinhos ele voltou a chorar. Olhei bem pra ele e perguntei se ele queria que eu cantasse. Ele disse que sim. E eu fui desenterrar da minha memória afetiva a música que minha mãe cantava pra eu dormir, todas as noites. Ela diz assim: "cativar é amar, é também carregar, um pouquinho da dor, que alguém tem de levar". Ele gostou da música. Resmungou um pouco enquanto colhiam o sangue, mas dormiu. Ele dormiu enquanto o furavam pela segunda vez pra colher a gasometria.

Depois fiquei pensando, a gente estuda tanto sobre escala de dor, sobre analgésicos potentes, sobre bloqueadores neuromuscular, etc, e essa criança só precisou de uma música como conduta analgésica. Nada contra os medicamentos, pelo contrário, eles são extremamente necessários e bem indicados em muitos casos, mas, de vez em quando, a gente precisa lembrar o que um dia acalentou os nossos próprios corações pra fazer o mesmo com os outros.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Deserto



         
       
         Caminho mais um pouco tentando ir mais adiante, mas não vejo nada novo. É tudo tão igual, tão quente, deserto e doido. Eu não sei se eu consigo. Deus me ajuda, por favor. Há quanto tempo estou aqui? Duas semanas eu acho, mas talvez mais. Não durmo direito, não como direito, não saberia mais dizer com precisão. O que aconteceu? Tanta coisa, como é possível tanta coisa ter acontecido em tão pouco tempo. Sento, tento encontrar algum lugar pra descansar. A primeira noite mal dormida é só o prenuncio de uma nova. Fecho os olhos, tento relaxar. Não consigo, não posso parar. Se parar eu caio e eu não tenho tempo pra cair; levantar demora. Mesmo assim, tempo não é a coisa mais importante que me falta.


                Quantas coisas difíceis podem acontecer em duas semanas? Meus limites foram superados nas minhas duas últimas.  A rotina já é demais, com os problemas que se seguem é quase impossível não ter crises assim, os meus desertos. Já passei por alguns, mas confesso que a cada um que vivo, eles se intensificam em mim. Os desertos são diferentes das tempestades as quais já descrevi. Nos desertos, cada grão de areia é uma coisa em mim que eu preciso mudar pra ser melhor, pra me sentir melhor. Cada grão de areia é uma pessoa que eu preciso cuidar. Cada grão de areia é um sonho de Deus pra mim. No entanto, o deserto é cruel – você conhece seus objetivos, deslumbra seu futuro, mas não é capaz de lidar consigo mesmo.  Eu ainda não sei o que fazer com tanta areia que me cansa, mostra minha pequenez e me torna incapaz.

Nesse ponto não adianta mais andar, eu fecho os olhos com força pra que nenhum grão de areia permaneça à minha vista. E eu oro. No deserto, nas tempestades ou na calmaria, eu oro. É quando de longe eu vejo, quase uma miragem, um Oasis. Lá o Príncipe da Paz me encontra, me alimenta, me traz descanso e conforta o meu cansado coração. Ele diz: vinde a mim, vocês que estão cansados e sobrecarregados e eu vos aliviarei. E eu sinto, o alivio dos meus fardos mais pesados que eu.  E ali mesmo, eu oro mais uma vez pedindo que o Oasis que vive no meu deserto, se torne o mar da praia. E nessa semana de descanso, no meu Oasis, eu sinto a praia sendo feita. Eu sinto meus grãos de areia todos sendo balanceados com as gotas da água, que no caso são as misericórdias de Deus. Eu sinto o calor das minhas responsabilidades sendo envolvido pela brisa do mar que é a Voz do Senhor que me guia por meio delas. Já quase na praia, eu sinto paz.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Pátio



Estava eu a caminhar pelo meu condomínio, com pressa, atrasada como sempre, quando eu vejo duas meninas pequenas e lindas correndo na minha direção com um tom meio aflito nos olhos e nas falas que se seguiram. Era uma noite de domingo, a única na semana na qual eu tentava sair de casa um pouco mais arrumada.  Eu ouvi quando elas ainda cochicharam ainda correndo vamos perguntar pra aquela moça. Fiquei pensando em quando eu tinha virado moça. Outro dia eu era a criança que brincava com meninas parecidas, um pouquinho depois a menina simpática do elevador, e de repente, eu era a moça. Fiquei preocupada com a dúvida que viria; se fosse alguma pergunta específica para adultos com certeza não saberia dizer. 

  "moça, moça, você pode nos ajudar? Estamos perdidas."

        Perdidas no condomínio que nem é tão grande assim, nisso eu podia ajudar, ainda bem. A menor das meninas já estava em prantos, enquanto a mais velha tentava manter a calma e ser de fato a mais velha. Eu disse que ajudava e me pus a andar com as meninas pelo meu condomínio nem tão grande assim. Nos minutos que se seguiram elas me contaram sobre a esquecida brincadeira de pique-esconde que terminou com as meninas perdidas pelo  condomínio. Andamos uns 20 metros até que elas viram a entrada agora já reconhecida e emocionadas começarmos a gritar "é ali!". Eu ri porque elas com certeza conseguiriam achar sem mim. Elas se puseram a correr o mais rápido que conseguiam até a entrada até que a pequeninha voltou, abraçou minha perna e voltou a correr. De longe eu ouvi os gritos agradecidos das meninas: "obrigada, moça". De nada, eu respondi.

                Continuei andando na mesma direção que elas, sendo que as mesmas já tinham desaparecido de novo. Depois de alguns minutos, já que não faz mais parte das minhas habilidades correr (talvez nunca tenha sido) cheguei à entrada do condomínio. Enquanto esperava, uma moça (essa era moça de verdade, não igual a mim) gritava “onde vocês se meteram? É pra brincar perto de mim”. Elas repetiram a mesma história trágica de antes de como haviam se perdido durante a brincadeira. Apontaram pra mim e eu ouvi quando disseram “aquela moça nos achou”. Achei? Levar aquelas meninas até a portaria não foi nada demais, no entanto, pra elas foi salvação. Crianças se perdem mais facilmente que os adultos, é verdade, mas elas são achadas de uma maneira que os adultos não são. 

sábado, 5 de agosto de 2017

Vista

Vista do HUCFF, 1° de agosto de 2017, por Clarissa Reis

Acho que prefiro não mais escrever, tenho aquela velha desculpa da falta de tempo, não que esse seja o motivo real. A vida é dura, mas esse também não é motivo. A vida não é tão dura pra mim. Eu cresci numa casa cercada de amor, cresci nos caminhos do amor que Cristo nos ensina e tenho um bom futuro à minha frente. Não escrevo porque eu não sei. Não sei escrever sobre as grandes lutas de terceiros e as minhas já não tão grandes, nem tão tristes. Tudo o que eu sempre posso dizer é o que eu senti ao ver determinado sofrimento e isso já não é tão real ou interessante quanto a própria história de superação.

Então decidi contar histórias, por que se existe uma coisa que eu sempre fiz bem foi drama. Mas hoje, no caso, já comecei divagando sobre a vida e é difícil mudar de estilo literário no meio do texto; como eu já disse, não sei escrever. Tudo o que me resta, como sempre, sou eu mesma e as minhas crises repetitivas e tão doidas, sempre. As dessa semana foram tão incríveis como todas as outras. A vida na faculdade é difícil, e como eu não posso me ater a experiências que não são minhas, a minha vida na faculdade é difícil. Mas não tão difícil quanto a vida de outras pessoas que vivem temporariamente na faculdade que no caso é o hospital.  

Eu entendo que eu e minha sensibilidade excessiva sofreremos bastante nesses próximos anos. Segunda semana de ciclo clinico e eu já chorei algumas vezes encarando a vista do HU, pedindo a Deus misericórdia e graça pra eu poder crescer sem quebrar de vez. Mas meus ossos não são de vidro, tenho vivido sempre. A clínica é ótima, soberana, essas coisas todas. O que ninguém te conta mesmo é o que fazer quando sua pergunta da anamnese faz seu paciente chorar, quando seu exame físico causa dor, quando sua presença incomoda. Não quero que pareça que não somos ensinados, os professores são incríveis e se aprende muito, muito mesmo. No entanto, existem coisas que a gente precisa sofrer pra aprender. Eu sou eternamente grata pelo ensino e espero ser eternamente humilde pra aprender até onde minha presença é necessária. Nessas últimas semanas, recebi sorrisos, choros, gemidos e dor; uma mistura de tudo o que define a fragilidade humana. A vida humana é tão frágil, e é esse o motivo.