sábado, 15 de fevereiro de 2020

será que eu sirvo?



Amanda, 8 anos, chega a emergência com uma história de trauma de 2 metros de altura de um brinquedo do colégio onde estuda. Apresenta sinais de rebaixamento de consciência, ou seja, se encontra sonolenta e falando palavras sem sentido. Ela vem acompanhada pela vó que muito nervosa não consegue explicar direito o que aconteceu. Eu, que antes era expectadora da situação não consegui me conter e tive que participar do atendimento de trauma pediátrico num serviço quase 100% de pacientes adultos. Era o meu primeiro, depois de alguns plantões naquele serviço. Me vi totalmente envolvida na situação. Levamos a menina tão linda com suas duas trancinhas e roupa escolar pra TC. Durante o exame a mãe chega chorosa e aflita pela menina; e eu tenho que me controlar pra não chorar também. Fico pensando que talvez eu não sirva pra esse negócio de Medicina não, mas não tenho tempo de pensar isso na hora. Enquanto aguardamos o resultado da TC, internamos a criança para observação e investigação do quadro. 

Enquanto eu vou e volto resolvendo alguns assuntos burocráticos encontro alguns familiares de Amanda pelo corredor aflitos por uma posição médica e eu, que ainda não era, me esforçava pra lembrar de tudo que haviam me dito e o que eu lembrava de ter estudado. Não consigo nem terminar meus pensamentos e falas um tanto confusos, sem certeza, e volto pra sala amarela. Lá vamos nós pegar o acesso da linda menina agora com suas tranças desfeitas - e como é difícil e angustiante ouvir criança chorar. Ainda mais uma mocinha tão frágil por tudo o que tinha acontecido. Mas permaneci lá, tentando não chorar junto e juro que não chorei. Ufa! Conseguimos de primeira.

Respiro aliviada enquanto caminho pra buscar uma nova gaze em outra sala e esbarro com o pai, aos prantos. Explico que só pode entrar uma pessoa por vez na sala e ele chora ainda mais. Tive que deixar ele entrar.
 - "mas só por cinco minutos tá bem?"
"- muito obrigada, doutora!" 
Tento explicar que eu não o sou, mas ele já está entrando na sala. Vou e volto mais uma vez. No caminho mais uma vez sou parada por uma senhora em prantos, procurava pela netinha dela Amanda. Ela soubera do acidente há pouco e precisava ver a neta. Vontade de chorar mais uma vez presente, pensando na minha vó. Eu sei que não devia, mas só consigo pensar na minha vovó - estaria do mesmo jeito. 

E lá vou eu, deixar mais uma pessoa sem permissão entrar. Mais uma vez penso que não sirvo pra isso. Eles entram, se falam, se beijam, choram pela criança que não consegue reconhecer muito bem os mesmos. Eu aguardo os dois minutos prometidos e lá vou eu, fazer a coisa mais difícil pra mim, pedir para os familiares deixarem apenas um no quarto. Eles tem algumas perguntas que eu respondo, em parte e com cautela. Na saída, a senhora me abraça e chora, me diz que eu não sei o bem que fiz a ela. "Você é a Pediatra né? Minha filha, muito obrigada." Eu não era, não sou. Mas a pergunta ecoou na minha cabeça e me fez pensar na Clarissa de alguns dias atrás tão duvidosa de algumas certezas anteriores. E agora a resposta divina havia vindo dos lábios de uma senhora agradecida, no momento abraçada a mim. Acho que nunca vou esquecer esse dia. No meio do caos, Deus ainda responde dúvidas, ainda cuida de nós. Amanda foi recuperando depois de um tempo a consciência, mesmo que sonolenta, e eu quando pisei fora do hospital chorei tudo o que não tinha chorado lá dentro. Talvez eu sirva pra esse negócio de Medicina.

p.s nome fictício da paciente