domingo, 27 de novembro de 2016

Atenção primária à minha saúde


        Nos primeiros anos da faculdade de Medicina, aprendemos muito pouco do que a Medicina em si é. No terceiro período, no entanto, temos essa matéria pratica chamada atenção integrada à saúde, AIS. Nela nós acompanhamos consultas, visitas domiciliares e procedimentos, em alguma clínica da família. Tem sido uma grande experiência –  a mais pratica, a mais humana que eu vivi na faculdade. Existem muitas histórias tristes que ouvimos, muitas vezes em que seguramos o choro pra não nos mostrarmos não aptos tão no começo da faculdade.  Dentre todos os pacientes, acompanhei a consulta de uma. Uma menina, uma mulher. Entrou no consultório, não aparentava ter mais de 25 anos, estava grávida. Minha primeira grávida, que emoção. Eu costumo dizer que eu sabia que o meu propósito de vida era cuidar de crianças, antes mesmo da Medicina. Eu queria pediatria, antes de querer medicina. Procuro não pensar muito nisso ainda. Enfim, fiquei muito feliz de acompanhar pela primeira vez, de tão pertinho, um bebezinho. Ela estava no final da gravidez de um menino. Pensei que talvez o nome dele pudesse ser Pedro, então na minha cabeça ele é o Pedro.  Ela parecia bem e feliz.
A médica faz perguntas pertinentes à gestação e acompanha suas ultras, exames e histórico pelo sistema. Depois disso, vamos ao exame físico, ela sobe a blusa e abaixa a calça. A médica palpa sua barriga e pede que nós sintamos os limites do útero na paciente. Quando é minha vez de sentir, o bebê chuta e eu o sinto. Eu senti tão mais que o chute. Sempre soube o que queria ser, mas sentir é outro estágio de aceitação que eu ainda não tinha chegado. Mas esse bebê, o Pedro, me fez sentir. Sentir a minha real responsabilidade no mundo. Sentir o grande propósito de Deus pra mim. Depois ouvimos seu coraçãozinho, batia tão rápido, o que é normal. Eu fiquei pensando na quantidade de vida naquele pedacinho de gente. Fiquei pensando em como seria ser futuro. Pensei nas oportunidades que ele teria, e na vida que ele levaria. E ali, ali mesmo, orei por ele. Pedi que Deus o fizesse feliz, que lhe desse amor. Eu não disse nada disso pra ninguém ali, nem acho que nosso papel como profissionais da saúde seja esse. No entanto, eu realmente espero que a vida seja gentil com o Pedro e que ele seja feliz. Ele me deu o que eu tanto esperava e agora eu sigo um pouquinho mais confiante no meu próprio futuro.  
Ele cuidou de mim, antes que eu pudesse cuidar de qualquer um. Eu sei que esse é só o começo de muitos casos que trarão grandes reflexões assim. Espero que eu saiba aprender em cada um deles. Espero ser uma boa médica, espero cuidar bem das pessoas, do jeito que o Pedro cuidou de mim.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Desperdício


Eu, que durante tanto tempo acreditei no propósito maior da linguagem, trazia agora a carga de tê-la usado sem pudor. Eu, que acreditei tanto no amor, não fazia dele um bom proveito. Sempre me questionei em relação aos desperdícios que eu fizera na vida, esse era só mais um deles. Andava na rua tentando não sucumbir em melancolia – pelas coisas ditas, pelo amor vivido. Se antes no amor eu vivia, agora nem vivo mais. Existia apenas. Levava os dias existindo neles, nunca apreciava demais alguma atividade ou me deixava ser entristecida por outra. Caminhava, porque caminhar faz bem. Comia, porque era essencial. Sorria, porque, às vezes, era inevitável. De resto, eu nada fazia.  

A vida era dura demais para minha sensibilidade sem limites. Nenhum desastre havia acontecido; eu apenas me esvaia na ilusão das minhas questões, mais uma vez. Pensava em tudo isso sentada nas cadeiras de uma praça qualquer, enquanto pulava mais uma refeição no dia. Eu vi crianças brincando em um parquinho próximo, e me esvai na pureza de suas risadas. Eu vi idosos fazendo exercícios, e me esvai no amor que eles tinham pela vida. Descobri que era uma atividade prazerosa e então, observei cada pessoa que passava e as admirava por algum motivo qualquer. Dentre todas as coisas que eu poderia fazer me esvair na felicidade alheia foi o que eu escolhi.

Eu sentava no mesmo lugar, no mesmo horário, todos os dias, e sorria. Sorria porque era sempre inevitável. Os idosos me chamavam pelo nome e eu brincava com as crianças todas as tardes. Redescobri o amor pela vida. Percebi que o maior desperdício era viver sem ser feliz.